domingo, 17 de julho de 2011

Nos dias em que as súmulas vinculantes, a uniformização de jurisprudência, os princípios humanistóides de toda sorte, a patrulha do politicamente correto e as minorias influentes dão as cartas no judiciário, a atividade de julgar transformou-se na arte de adequar-se ao padrão vigente. Nesse contexto, o valor de um juiz de primeira instância é dado pelo número de sentenças confirmadas, sendo sua angústia perene a perspectiva de uma reforma. Exatamente por isto, a decisão do juiz Jeronymo Pedro Villas Boas, que anulou o registro de união estável de dois homossexuais de Goiânia - ignorando a autorização do STF - é um ponto fora da curva, admirável por sua independência e digno de registro.
No mero exercício de suas funções constitucionais, o juiz de primeira instância agigantou-se frente àqueles que deveriam lhe servir de fonte de conhecimento e de inspiração; tornou-se exemplo para aqueles de quem se esperam mostras de experiência, maturidade e temperança - requisitos inescapáveis aos que decidem sobre o patrimônio e a liberdade do indivíduo. O juiz, orientando-se pela lei posta, objetiva, impessoal e genérica, sem arvorar da função do legislador, demonstra sua lealdade ao texto constitucional e deixa o novato Luiz Fux aparvalhado em rede nacional dizendo que o STF é a "única" corte apta a dizer a constitucionalidade das leis - ato falho que revela as inclinações totalitárias que marcam a atual corte.
Em sua sentença, o juiz Villas Boas demonstrou que a Constituição reflete os valores morais de um povo e que ela materializa aquilo "que se sedimentou e evoluiu como comportamento natural na sociedade", incorporando-se de tal forma ao ordenamento jurídico da nação que nem mesmo a corte constitucional pode subverter seu significado sem que atente contra a vontade popular. Com isto, o juiz apresentou aos ministros os rudimentos da organização social e funcionamento do regime democrático.
O juiz Villas Boas lembrou que a Constituição, votada por representantes eleitos pelo povo, reconhece expressamente "a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar" e isto ocorre precisamente por ser nesta configuração que se tem o fundamento básico do relacionamento familiar: a constituição de prole comum. Nesta passagem, o juiz trouxe aos ministros fundamentos de lógica elementar e hermenêutica jurídica: homem e mulher, não pode ser lido como homem e homem nem mulher e mulher.
Discorrendo sobre liberdade, o juiz Villas Boas esclareceu que o ato de se relacionar com pessoas do mesmo sexo é decisão que pertence ao âmbito da vida privada e que a mera exteriorização desta prática não pode ser apta a ensejar a proteção que a Constituição devotou à unidade familiar. É quando o juiz permite aos ministros do STF lidar com as noções de causalidade e igualdade material, posto que também não existem direitos inerentes à pratica heterossexual em si.
Exatamente por ter sido democrático, racional e objetivo, o juiz Villas Boas é tido agora por retrógrado, conservador e preconceituoso; por ter honrado a magistratura em uma decisão marcada pela coerência semântica e factual, teve sua sentença avocada e cassada pela corregedora geral de Justiça de Goiás; por ter sido fiel à letra da Constituição, será lembrado no STF por sua insubordinação e rebeldia; por ter se limitado à função de dizer o direito, está associado ao objetivismo impessoal do direito posto e foi declarado inimigo da justiça social; por ter respeitado a igualdade formal perante a lei, a única possível dada a diversidade de aptidões dos homens, tornou-se alvo da sanha segregacionista do movimento gay e das hordas de autoproclamados fiscais do bem, que veem na profissão da fé cristã do juiz a única explicação para tal disparate, como se não se esperasse dos juízes, ainda que secundariamente, a devoção às leis.
Diante de patrulha tão aguerrida, o juiz Villas Boas não capitulou: anulou o segundo registro de união estável entre homossexuais - sob os mesmos fundamentos da primeira sentença - e requereu a revisão do ato da desembargadora corregedora, sustentando que a avocação e posterior cassação da sentença original exorbitou das funções daquele órgão, o que a faz padecer do vício da ilegalidade. Onde um homem comum recuaria, o juiz Villas Boas avançou na defesa convicta de seus princípios; em vez de lamentos e resignação, altivez e ações práticas.
É bem provável que as instâncias superiores do judiciário reformem em caráter definitivo as decisões do juiz Villas Boas e outras que venham a ser proferidas, repetindo a decisão anticonstitucional dos ministros do STF. Ao final desta questão, embora se sagrem vitoriosos os colegiados judiciários, sua ânsia de favorecimento às minorias barulhentas terá se dado à revelia das instituições e das leis. O juiz, vencido pelo coletivismo militante, é que terá defendido o regime democrático e usado as leis e a Constituição por escudo e fundamento. Eles terão desafiado a natureza e a realidade objetiva; o juiz terá amparado suas ações sobre os pilares da lógica e da razão. Àqueles, restará a desonra da fraude à Carta que juraram defender; ao juiz Jeronymo Pedro Villas Boas, a recompensa única e transcendente de construir uma mente livre de contradições.
Publicado originalmente em: http://www.midiasemmascara.org/artigos/direito/12212-admiravel-rebeldia.html

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Início das obras da Arena das Dunas; ou, A Morte do Castelão



Esta semana foram iniciadas as obras de construção do estádio Arena das Dunas, em Natal. O novo parque será instalado no local que hoje abriga o ginásio poliesportivo do Machadinho e o estádio Machadão - o Castelão que ainda domina a minha memória vocal, por assim dizer.


Orçado inicialmente em R$ 400 milhões, o que deve chegar fácil aos 800 até o final (alguns olhinhos brilham com a perspectiva do Bi), o novo estádio nascerá marcado pela afronta lógica em se trocar duas estruturas perfeitamente funcionais para o esporte do estado por apenas uma; é bem verdade que será adequada ao padrão FIFA nos dois ou três jogos da Copa (se ela vier), mas a que nos servirá esta fantástica característica após julho de 2014? Para receber os 34 torcedores de Alecrim e Baraúnas? Lembra-me aquela história de um erudito que durante uma festa alardeava sua fluência em latim e não resistiu à ironia de um impertinente: "mas o professor é fluente em latim com que quem, mesmo?".


Há também a afronta à moral, se é que se pode esperar isto da classe política nestes dias, consistente em uma despesa deste vulto ser realizada com dinheiro público num estado que hoje faz leilões de créditos junto a fornecedores, não paga salários de novos médicos há oito meses e é incapaz de nomear policiais e soldados concursados por problemas de caixa. Um claro caso em que se falseia despudoradamente a realidade. 


Sendo este o custo da modernização e dos holofotes que a FIFA nos impôs, aceito de bom grado pelo populismo dos governantes e pelas ilusões de grandeza dos governados, que estejamos pelo menos cientes de que as afrontas à razão e à realidade cobram seu preço mais cedo do que se imagina.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Hildebrando e Áurea

A sombra do serrote avançava ligeira e já envolvia todo o terreiro. Mais alguns minutos e se perderia no infinito, avisando à brisa da boquinha da noite que pode começar a soprar para baixar o fogo do dia. O vaqueiro já tinha voltado da manga com a vacaria e chiqueirado os bezerros, garantindo o leite da manhã seguinte. Galinhas e patos já procuravam seus lugares altos no poleiro improvisado na cajarana, com a algazarra típica de quem foge da morte rasteira por nome de cobra e raposa.

Lá longe, fundindo-se com o dourado do horizonte, surge uma forma tremeluzente de contornos incertos, mas de fácil identificação para o olho experimentado do sertanejo: é um cavaleiro. Uma figura volumosa balança de um lado para o outro por arte da pequena gangorra nas ancas do animal.

Ombros largos e preguiçosamente caídos, uma mão na lua da sela, a outra se esforçando para vencer a pança e alcançar as rédeas. Os pés teimam em escapar dos estribos, preferindo o balançar aleatório no vazio. Altivez e harmonia, definitivamente, não descrevem o paladino. Áurea aperta os olhos e se pergunta: “quem é meu Deus, a esta hora?”. Mas antes que aquela silhueta encontre um par em sua memória, a mulher é interrompida pelo lamento do marido, que vem com um esgar dos que sofrem de verdade: “valha-me Deus... acabou-se a comida de minha casa! Hildebrando tá chegando.”

Suassuna sabia que não lidava com um amador. Desobrigado pelos recursos de família da virtude do trabalho, Hildebrando aquietava sua alma nos prazeres simples da vida, em especial no melhor deles, conforme seu julgamento: comia com gosto e sem limites. Era um glutão. Com certo enfaro, contava as horas entre uma refeição e outra tendo por passatempo a administração da fazenda do melhor local possível: seu trono balançante entre os tornos mais fixes do alpendre.

Foi de lá que uma vez se viu confrontado com uma praga rogada por uma cigana, desgostosa que estava com a resposta ao seu pedido de esmola: “tem não!”. A andarilha, mitologicamente afeita ao sobrenatural, vaticinou: “pois uma cascavéia vai picar ocê no caminho do roçado!”. Hildebrando, cuja pele alva jamais esteve ameaçada pelos rigores do sol sertanejo, que só conhecia o roçado por ouvir dizer, pega numa das varandas da rede e num movimento sincronizado de braço e corpo envolve-se no linho, dizendo precavido: “só se ela cair do telhado!”.

Áurea, feliz em ver o irmão, apressa-se nas boas-vindas: “vamos apear, Brando...”. O irmão agradece a gentileza: “já almoçaram? Viagem longa”. A observação provoca um leve tremor em Suassuna, como o prenúncio de uma grande desgraça. “Você janta com a gente e pernoita por aqui”, resolve a irmã. Era o que o viajante queria ouvir.

A visita do irmão era uma das poucas alegrias na vida de Áurea. O casamento tinha-lhe retirado o convívio da família e ao mesmo tempo lhe apresentado a uma nova sorte de valores, ou à falta deles: até então não sabia o que era privação, mesquinharia e pequenez d’alma. O enlace foi apenas o início de suas agruras. Em suas últimas conversas com o sobrinho que lhe visitava semanalmente em seu exílio final, Mossoró, dizia-lhe com uma clarividência incomum para quem já perdera a luz dos olhos: “Júnior, na vida você precisa se precaver dos ‘cinco esses’”. E completava: “Saudade, Solidão, Suassuna, Saldanha e Satanás!”. Vitimada pelo encontro forçado com os primeiros quatro algozes, argumentava aos céus que não merecia a companhia do último. No que concordam os Diógenes que aqui ficaram.

Na meia hora de prosa no alpendre, o visitante atém-se sempre ao essencial, de modo a não prolongar sua espera. A conversa é boa, mas saco seco não se põe falante. Áurea, encarregando-se pessoalmente das orientações à criadagem, cuida para que o jantar seja farto, digno da voracidade do conviva. Suassuna, de hábitos frugais à mesa, parte pelo corpo franzino, parte pela excessiva previdência material (confundida pelos mais azedos com avareza pura e simples), testemunha a derrubada de um cuscuz, duas canecas de leite gordo, oito ovos de capoeira, uma banda do queijo coalho que ainda curava no cincho, uma mão-de-vaca que escapara do almoço, três tapiocas com nata e uma caçarola de coalhada com um pacote de bolachas sete-capas esmigalhadas com as mãos. Tudo isto intercalado por “homem, você morre”, “é um animal” e “ô, jumento”, ditos com desesperança e pesar pelo anfitrião. Uma terrina de doce de leite ao final, um arroto ritualístico de satisfação e todos se recolhem. O casal em seu quarto, Hildebrando no alpendre.

Áurea termina suas orações, deita-se de lado e dorme. Suassuna tem por hábito à rede envolver-se na contabilidade da fazenda e nas maquinações de vida, mas naquela noite o sono tem outro motivo para demorar a chegar: um ronco gutural emerge do alpendre e se espalha pela casa, como só em noites de trovoada se vê por aquelas bandas de Patu.

Decidido a dormir, Suassuna passa a usar o ronco de Hildebrando para dar ritmo ao balanço da rede, que é empurrada por um leve toque de seu pé contra a parede. Mas aquela não era uma noite de Morfeu. O ronco desaparece gradualmente e há agora em seu lugar um gemido. De início bem baixinho, quase entre os dentes, cresce em intensidade e dor. Logo emerge daquele alpendre uma sinfonia de carpideira: “aaaêê... uhhmmm... aaaaai...”. O prantear pungente comove Suassuna: “Áurea, teu irmão tá morrendo”.

Áurea acorda, mas não entende o que acontece. O marido explica sem demora: “um homem sem estilo destes tem de morrer empanzinado. Vai lá e acode o desgraçado com um chá de boldo”. O alpendre estremece: “Uhhmm... aêmedeus...”.

A mulher abre a porta e fecha o robe até em cima, cuidando do sereno da noite. Vai até a rede do irmão e enquanto caminha pelo tijolo batido o marido espera do outro lado da janela com um discreto sorriso de satisfação nos lábios, certo de que presencia uma rara cena de punição dos pecadores. Áurea chega à rede do irmão. Àquela distância, os gemidos são lancinantes e transformam seu ceticismo em preocupação sincera pelo estado de Hildebrando. Ela balança de leve o punho da rede e pergunta: “Brando?”. O homem, que antes se contorcia de um lado para o outro, espicha-se para trás buscando aquela voz caridosa e, como se estivesse diante de uma aparição da Virgem, diz: “Ááááurea! Grazadeus. Ô Áurea, pelamordedeus, vá olhar se aquele munguzá já dá um caldo! EU TÔ MORRENDO DE FOME!”

...

Do outro lado da janela, o sorriso se desfaz: “é um animal!”.

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