quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Aos Filhos dos Nossos Filhos

Natal, 27 de março de 2000.

Ontem, à hora de deitarmos, mais uma vez ele retomava aquele assunto. Não era a primeira vez naquele fim-de-semana. Estranho seu repentino interesse por tal tema. Melhor, estranho que nos pareça estranho ante a previsibilidade de fato tão marcante e inexorável. Os recém-chegados talvez guardem melhor as lembranças da época que precedeu seu retorno. Tentaremos não desnaturalizar-lhe o entendimento.

- Painho, quando a gente morrer, a gente vai pro céu?

- Sim.

- A gente vai ver a mãe de vovó Graça?

- Sim, filho, veremos bisavó Josefa.

- E bisavô Damião?

- Também!

- A gente vai ver Jesus?

- Sim! Respondi convencendo a mim mesmo quanto à esta última benção.

- E quem mais?

- Bisavô Lycurgo, bisavó Cristina...

- Quem é ele?

- Tá vendo naquela foto, aquele homem segurando painho na cadeira de balanço? É ele... Bisavô Lycurgo.

Aconteceu muito cedo.

Pude rever a verde mata que ladeia a estrada de Marcelino Vieira logo após o trevo que a faz RN, nosso caminho diário naquele período da vida em que a liberdade estava limitada pelo horizonte e a serra. O tema da conversa é um só; os pensamentos que dela nascem se multiplicam naquelas jovens cabecinhas. O córrego interposto pela estrada transforma-se em pequeno açude que dá frescor ao ar; este já não mais açoita, acarinha. Estarão todos ali nos próximos três ou quatro meses. Existência fugaz, mas abençoada. Viajando por catorze anos de lembranças, aquela sensação me toma outra vez. A mais indescritível das saudades. Saudades do que não tive. Saudades do que poderia ter. Sozinhos, naquele dia comum de fazenda, choramos em silêncio. Alguns anos mais tarde, em comunhão fraterna de pensamentos, soubemos da semelhança do sentir. A falta de quem foi antes, sem que nos fosse permitida a convivência. Lamentávamos por nosso pai já não poder ter alguém tanto quanto nós o temos.

Aconteceu muito cedo.

Em que momento se fazia o sorriso em teu rosto? O que dizias ao nos saudar? O que te fazias bravo? Qual o cheiro dos teus lençóis e camisas? Qual sua música preferida? O que pensavas ao observar a chuva do alpendre? Que outros lugares te vinham à mente ao beber novamente a água do açude após o período de capital? Que imagem te confortava? Perguntas. Não obtive respostas.

As histórias que me contaram sobre ele são muitas vezes repetidas e é subliminar o esforço em adequar o cotidiano de forma a contê-las como máximas e exemplos. Há uma mescla de divino e humano quando repetimos histórias dos nossos. Homenagem imaculada aos que nos são caros ou necessidade de manter acesa a nossa linhagem biológica?

Amor, simplesmente. Amor pelo que nós somos. Pois se o tenro ramo de hoje é a projeção do forte galho de amanhã o largo caule guarda em suas reentrâncias as memórias da jovem muda que um dia fora. As aquisições de uma vida são a essência de muitas outras que lhe sucederão. Somos inteiramente responsáveis pelo porvir, pelos filhos dos nossos filhos, por suas lembranças e ações.

Aconteceu muito cedo. Mas com que autoridade nós, que não percebemos a beleza dos lírios dos campos, julgamos o tempo? Como poderemos perscrutar a motivação dos Céus e sobre o tempo das coisas emitir um juízo certo? Como ver incongruência pontual onde tudo o mais lembra harmonia e perfeição?

Há uma boa explicação! Estejamos aptos a visualizar a vontade reta do destino a outorgar-nos melhores condições de desenvolvimento de nossas potencialidades e por à prova compromissos passados. Mas, sobretudo, tenhamos a certeza que aqueles que se anteciparam na partida haverão de receber-nos um dia, ou por nós serem recebidos, lá ou cá. Porque o amor é grande o suficiente para ser eterno e sublime o bastante para manter-se íntegro diante da ação do tempo ou da distância.

Hoje são 90 anos. Que nos próximos noventa teu reflexo permaneça vivo nas mentes das gerações vindouras, como um guardião a lhes reger os passos, segundo a melodia rítmica de tua aura. Já não somos um apenas. Já não há diferença entre passado e futuro, tudo nos é presente. É Deus disseminando em nós Seus atributos. Que os filhos dos vossos filhos, com a visão mais depurada, possam compreender que se seus pais foram o principal projeto de vida de alguém, eles próprios são a certeza da boa jornada. E que mantenham acesos o amor, o respeito e o exemplos que hoje guardamos como um imperativo maior que nossa própria vontade.

- Bença Pai...

- Deus te proteja meu filho.

L.N.N.