Pela primeira vez desde a II Guerra, os filhos vivem pior do que os pais na Europa. A eterna juventude virou um pesadelo.
Por Mario de Sabino, de Paris.
Os jovens brasileiros que decidiram ir às ruas para clamar por mudanças têm um país a reformar e uma nação a construir. Não importa a variedade das bandeiras, o seu combustível é a esperança de que o gigante acorde do eterno sono de hino. Ao fim e ao cabo, numa paráfrase otimista da máxima de Roberto Campos, a burrice e os seus apêndices — a corrupção, a improvisação, o descaso — podem ter tido um passado glorioso, mas deparam com um presente raivoso e talvez já não contem com um futuro tão promissor no Brasil. A ver. Do outro lado do Atlântico, naquele que é o berço da cultura ocidental, 100 milhões de jovens europeus enfrentam outro tipo de imortalidade: a da sua própria mocidade.
A eterna juventude é uma quimera que embalou a literatura, impeliu navegantes a buscar a sua fonte em latitudes longínquas e, hoje, está misturada à química da medicina plástica. Na Europa, contudo, na Europa da União Europeia (UE), ou mais precisamente no que era para ser a redentora Europa da zona do euro, a moeda única que circula em dezessete dos 28 países amalgamados numa comunidade de meio bilhão de cidadãos, a juventude eterniza-se em fato estatístico preocupante e pesadelo pessoal diário. É-se jovem por tempo demais, por um período indeterminado que, não raro, dura até que as primeiras rugas começam a surgir e os cabelos brancos, a predominar. A crise econômica, prestes a chegar à segunda infância, mas cujas raízes foram fincadas há pelo menos duas décadas, expôs uma geração juvenil — e outra anterior já nem tanto, na cronologia banal do correr dos anos — sem trabalho e quase sem esperança de crescer. A escassez de esperança corrói o indivíduo, esgarça as tramas familiares e põe em xeque o sonho europeísta. “Não existe país quando não existe trabalho”, resumiu o primeiro-ministro italiano Enrico Letta, na integridade dos seus 47 anos, idade em que muitos dos seus concidadãos ainda dependem dos pais, naquela que é a face mais perversa da pior fase por que passa o continente desde o fim da II Guerra Mundial.
Nas nações em que um mínimo de lógica civilizatória se impôs aos instintos primitivos, o ciclo da existência prevê que os pais eduquem os filhos para que eles vençam as sucessivas etapas da vida, tenham oportunidade de ultrapassar os limites paternos e, eventualmente, os auxiliem na velhice. Pois essa lógica, com as exceções que confirmam o atual desastre, foi subvertida na maior economia do planeta. Como, no jovem, vem se matando o adulto, hoje os mais velhos é que sustentam os condenados à adolescência. O médico e ensaísta brasileiro Afrânio Peixoto, com o perdão da referência tão antiga quanto chamar a Europa de “Velho Mundo”, escreveu que, para os europeus, ciosos da sua reputação, todas as doenças tinham origem estrangeira — a peste era “oriental”; a cólera, “asiática”; a terçã, “tropical”; a febre amarela, “tifo americano”. Os números são ululantes no diagnóstico de que o desemprego juvenil constitui uma afecção essencialmente europeia.
É um quisto nos pulmões, surgido a partir de uma moléstia generalizada. Ele precisa ser combatido imediatamente, sob a pena de se perder o paciente. Duas semanas atrás, os líderes da UE discutiram a questão. Mesmo os falcões cederam à emergência. “O número de jovens sem trabalho é apavorante, um enorme obstáculo à capacidade europeia de competir na corrida global”, reconheceu o primeiro-ministro inglês David Cameron, eurocético como boa pane dos britânicos. Decidiu-se reforçar o pacote Youth Guarantee, ou Garantia de Juventude, para financiar o treinamento profissional de jovens até 25 anos, lançado em fevereiro, com um aporte inicial de 6 bilhões de euros, a ser investidos em quatro anos. Agora, serão 9 bilhões de euros nos próximos dois, com o aceno de mais injeção de recursos em 2016. O dinheiro será investido em treinamento profissional nas escolas, requalificação de quem não consegue voltar ao mercado e troca mais detalhada de informações, para facilitar, por exemplo, que um jovem espanhol encontre um emprego adequado ao seu perfil na Holanda, e por aí segue. A ninharia já é um começo. Acabou a denegação.
O continente de pernas cansadas corre para salvar a sua oxigenação, o que é vital não só para si próprio. A Europa que emergiu da destruição perpetrada pelo ditador nazista Adolf Hitler abriu uma avenida de paz e prosperidade para o mundo ao emprestar melodia única a vozes até então em cacofonias seculares. “A memória da II Guerra Mundial e as exigências da Guerra Fria conduziram três gerações a uma união pacífica sem precedentes na história europeia e inédita em qualquer outra parte”, diz o professor inglês Timothy Garton Ash, especialista em estudos europeus da Universidade de Oxford. Formou-se, assim, um coro por vezes dissonante — porém, coro — que começou a desatinar continuamente somente em 2008, quando a onda de choque financeira, surgida nos Estados Unidos, cortou o crédito abundante que ajudava a escamotear as profundas diferenças na saúde econômica dos diversos cantores.
A partir da crise, ficou evidente como a Alemanha, que logo após a reunificação cambaleava como um "homem doente”, havia se reerguido em toda a sua pujança, graças à “receita Palmirinha”, cujos ingredientes são tão batidos como clara em ovos de bolo: disciplina fiscal e consensos num arco que vai do governo aos sindicatos, das instituições de ensino às companhias. Refratárias à “receita Palmirinha”, Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha. Itália e França mostraram fragilidades decorrentes de máquinas estatais inchadas, sociedades viciadas em doses maciças daquela droga chamada subsídio público e estruturas produtivas engessadas por uma legislação trabalhista arcaica, fruto da aliança entre partidos e organizações sindicais de viés populista. Nesses países encalacrados, a iniciativa de dar emprego é punida com encargos tão ou mais altos do que os que afligem os empresários brasileiros. Um exemplo para turista ver são as lojas e os restaurantes parisienses. Eles deveriam abrir em horários flexíveis, como ocorre nas metrópoles americanas e brasileiras. Afora agradar aos milhões de visitantes da capital francesa e aumentar o lucro dos estabelecimentos, isso criaria uma enorme quantidade de postos de trabalho, especialmente para rapazes e moças dispostos a ganhar algum dinheiro enquanto o restante dos empregados folga. Mas não: lojas e restaurantes são impedidos de fazê-lo, a não ser que os proprietários paguem uma taxa para tanto. Ou seja, Paris aos domingos se assemelha à São Paulo de trinta anos atrás.
A fábula das formigas alemãs e das cigarras vizinhas é uma simplificação jornalística, porque ignora a compleição de cada um (esquece-se também que a Alemanha tem lá as suas bombas de efeito retardado) e os efeitos deletérios da adoção do euro, em 1999, que poderia ter sido feita de maneira menos atabalhoada, dado que foi como decretar que, a partir dali, todos os europeus aderentes passariam a ter peso e altura idênticos.
Seja como for, a simplificação funciona no seu roteiro básico com um dos vértices da figura que o professor Garton Ash desenha desta forma: “Enquanto governos, empresas e famílias empilhavam insustentáveis níveis de dívidas, jovens europeus de Portugal à Estônia e da Finlândia à Grécia tomaram como garantidas paz, liberdade, prosperidade e segurança social. Quando a bolha explodiu, o fato deixou muitos amargamente desapontados e induziu a lancinantes divergências entre as experiências de diferentes nações. Neste momento, a Europa mostra falta das forças propulsoras que antes a propeliam em direção à unidade. Mesmo que o medo comum das consequências do colapso da zona do euro a salve do pior, a Europa precisa de algo mais do que o medo para retomar o seu projeto magnético de meio século”.
O algo mais é o reconhecimento — ou a criação, vá lá — de uma identidade fone o suficiente para resistir sem rachaduras à sucessão de conjunturas nem sempre favoráveis. É espantoso como, desde o lançamento das suas bases, a UE não conseguiu inculcar nos seus cidadãos a convicção de que pertencem a um conjunto. Para fazer esta reportagem, VEJA ouviu jovens dos "big five” — Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha. Em consonância com as sondagens efetuadas pelos institutos de pesquisa, nenhum deles se considera europeu no sentido imaginado pelo alemão Konrad Adenauer, pelo holandês Johan Willem Beyen, pelo francês Robert Schuman e pelo italiano Altiero Spinelli, pais dessa pátria inexistente nas almas. As moças e os rapazes entrevistados pertencem à classe média, bem como os leitores de VEJA, e recebem ou receberam uma ótima educação. É um prazer escutá-los. Vocalizam com clareza a sua visão da realidade, interessam-se por temas espinhosos como impostos excessivos e imigração, conhecem as ameaças ao seu desenvolvimento — e, a despeito do naufrágio da maioria das economias, na contramão da tendência, mostram-se otimistas quanto à capacidade de emergir adultos.
A Europa, no entanto, é-lhes distante como ideia, embora identifiquem vantagens advindas do bloco e desvantagens proporcionadas pela burocracia encastelada em Bruxelas. Uma boa ilustração é a fala do inglês Jonathan Kemeys, de 22 anos. Sua concepção não é tão diferente da cultivada por Lord Byron, o poeta romântico do século XIX. Diz o rapaz: “Geográfica e politicamente, o Reino Unido é pane do continente, mas, em espírito, nós tendemos a nos ver como uma porção separada, talvez por sermos ‘ilhéus’. Quando ouço falar em Europa, penso nos antigos países católicos, como França, Espanha e Itália. Penso nas ruínas romanas, na arquitetura maravilhosa, no Mediterrâneo e nas paisagens verdejantes. Uma história complexa de guerras, religião, política, impérios e conquistas. Há dois anos, economizei dinheiro e viajei durante o verão, com a minha namorada. Não esqueço os lugares visitados por nós, especialmente Roma, Paris, Veneza e Budapeste”.
Jonathan, filho de administradores de empresas, teve de economizar dinheiro para viajar. Quantos rebentos da classe média brasileira são obrigados a fazê-lo? Em geral, eles recebem viagens de presente. Trata-se de uma diferença importante, motivada não pelo momento, e sim pela formação das mentalidades ao longo dos séculos em que se alternaram abundância e escassez, paz e conflito. É primordial aprender a andar com as próprias pernas desde cedo. Nisso, ingleses e continentais são semelhantes. Um jovem francês, por exemplo, não recebe mesada, muito menos leva um carro quando completa 18 anos (no máximo, é presenteado com uma lambreta). Para pagar custos como transporte e alimentação fora de casa, é obrigado a se virar com uma média de 100 euros por mês, o equivalente a 300 reais. Não sobra quase nada para a diversão. A contrapartida, ao menos em Paris, é que dá para comprar cerveja no supermercado e ir para a Ponte des Arts ou marcar um piquenique no novo parque às margens do Sena. E ninguém vai expulsá-lo de uma brasserie se você passar horas bebendo um café. Para ir além de tais possibilidades, ou se junta dinheiro, renunciando ao máximo do mínimo, ou se vai trabalhar em empregos temporários para aumentar o parco rendimento. O aspecto é interessante para entender o tamanho da perplexidade. Apresenta-se difícil até seguir esse caminho didático. Com a queda dos salários e a desocupação, diminuiu o consumo — e o setor de serviços, fonte por excelência dos trabalhos temporários juvenis, deixou de contratar ou se tornou alvo de gente mais velha, desesperada por qualquer salário.
É necessário atravessar a aridez das cifras para avistar o panorama de devastação. Os índices de desocupação de moças e rapazes, normalmente maiores em qualquer latitude, devido às peculiaridades da idade, exibem níveis alarmantes que aceleram para cima. De acordo com a estatística mais utilizada, aquela que afere o desemprego dos jovens de 15 a 24 anos que estão à procura de trabalho, e descarta aqueles que apenas estudam, o número é de 60% na Grécia, 50% na Espanha, 40% na Itália e 25% na França. Entre as grandes economias, a Alemanha é um ponto fora da curva. A situação não é tépida na faixa imediatamente acima, de 25 a 29 anos, quando se passa à condição de jovem plenamente adulto. A taxa de desemprego cai, mas o espectro do trabalho temporário, sem vínculo formal ou com contratos de brevíssima duração, assombra. Na Espanha, o pior dos cenários, quatro em cada dez cidadãos próximos dos 30 anos fazem bicos ou mantêm laços precários com os seus empregadores, sem nenhuma garantia de renovação ou coberturas que a lei confere aos que têm o correspondente brasileiro do registro em carteira. Em quase todos os países da UE, não importa se a profissão é de nível técnico ou superior, ou se o desempenho é excelente, bom ou medíocre, os salários de rapazes e moças permanecem estacionados entre 800 e 1200 euros mensais (2400 a 3 600 reais). O que parece uma quantia razoável no Brasil não dá para declarar independência ou sustentar uma família no mesmo padrão da geração europeia nascida na década de 60.
Um estudo da fundação Ermanno Gorrieri intitulado “Generazioni disuguali” (“Gerações desiguais”) fornece um retrato de como a ladeira, na Itália, tem apenas uma pista, e é na descendente. Há vinte anos, feita a transposição da lira para a moeda única, o salário médio anual de um trabalhador de menos de 30 anos era de 13000 euros. Hoje, é de 10000. Na década de 80, mais de um terço dos jovens entre 20 e 29 anos ocupava uma posição profissional melhor do que a de seus pais. Essa fatia, em 2013, não chega a 20%. É a primeira vez, desde que a Itália se tornou uma república, que uma geração está pior do que a precedente. Dá para entender por que metade das moças e rapazes a deixaria. Aliás, é o que estão fazendo. O destino mais procurado é a Alemanha, claro. O Leste Europeu, que roubou muitos empregos da porção ocidental, por causa da mão de obra mais barata, é outro destino dos italianos. Já há um verdadeiro enclave, na cidade de Wroclaw, de peninsulares altamente qualificados, atraídos pela oferta de emprego nesse centro de tecnologia na Polônia. Os salários são baixos, mas a) eles existem; b) vive-se bem com menos; c) subir na carreira não é miragem.
Como apenas indignação não põe a mesa, os espanhóis caem fora até em direção ao Marrocos. Uma moça de boa posição social, como Mélina Cloup, de 18 anos, aluna de uma faculdade respeitada em Madri, só encontra horizonte adiante das fronteiras, como ela declara em seu depoimento na página 93. Os franceses, que há dez anos vêm trocando Paris por Londres, por causa do Fisco, armaram uma segunda rota de fuga para o Canadá, agora em busca de salário. A remuneração de pessoas com nível universitário, quando há, é 15% menor do que dez anos atrás, e não adianta ter um diploma de uma grande école de administração ou engenharia para reverter a curva. O canudo de uma universidade de ponta, embora continue a ser vantagem competitiva, não representa mais chancela de sucesso. Há duas semanas, um manifesto assinado por três franceses — um consultor, um cantor de rap e um jornalista — foi publicado no jornal The New York Times. Sob o título “Jovens franceses, a sua saúde está no exterior: se mandem!”, eles acusam a França de ser governada por uma “gerontocracia ultracentralizada e esclerosada”, de ser um país em que “uma elite cuja idade oscila em torno dos 60 anos decide um pouco sobre tudo e onde um quarto da juventude está desempregado”. A tintura no cabelo do presidente François Hollande não tapeia.
Um dos resultados demográficos dessa situação é que os jovens se casam ainda mais tarde (quando se casam), têm ainda menos filhos (quando têm) e moram em repúblicas até tarde — quando não regressam, derrotados, ao ninho paterno. Desde 2008, a idade média dos rapazes que saem de casa para tentar um voo-solo ou em companhia da sua outra metade subiu para 31 anos na Itália, 30 anos na Grécia e 29 anos na Espanha. Não bastassem os aborrecimentos cotidianos proporcionados por marmanjões dependentes, o impacto econômico do fenômeno é vastíssimo, em especial para um continente que precisa incrementar a sua taxa de natalidade, a fim de se manter no pelotão da frente das economias industrializadas.
Se a situação dos desempregados é dramática, a dos neets é trágica. Trata-se da sigla, em inglês, para a população entre 15 e 34 anos not currently engaged in employment, education or training (atualmente sem emprego, escola ou treinamento). Sim, um bom pedaço desse universo é de trintões que deveriam estar preocupados em acumular dinheiro para a educação do primeiro filho e em via de ter o segundo. Os dados fornecidos a VEJA pelo Eurostat, o instituto de pesquisas da União Europeia, são arrepiantes. Extraindo-se a ofuscante Alemanha, as taxas, há anos altas, aumentam constantemente, em desafio a qualquer prognóstico róseo. Mais de 1 milhão de ingleses na sua melhor fase produtiva apresentam-se completamente ociosos, enquanto 1,9 milhão de franceses estão de braços cruzados e pés em cima do sofá. Quanto à Itália, a ruína neet é de dimensões romanas: 2,1 milhões de ragazzi e ragazze encontram-se num amaro far niente. Para se ter uma noção da proporção, note-se que, juntos, os três países não perfazem a população total do Brasil. O custo da UE com o amparo à armada de desesperados e desesperançados alcançava, em 2011, 153 bilhões de euros por ano — valor semelhante ao do produto interno bruto do estado do Rio de Janeiro, o segundo mais rico do Brasil. Diz o inglês Jonathan Todd, representante da Comissão Europeia para a inclusão social: “O preço que pagamos pelos atuais níveis de desemprego juvenil ou pelo emprego precário é alto demais. Estamos arriscados a ver uma geração inteira desperdiçada. Um desastre de qualquer ponto de vista”. Ninguém precisa ser original em Bruxelas, basta ser nítido.
O mal-estar na Europa vem se traduzindo em ressaca. No século XIX, num dos seus arroubos, o poeta francês Charles Baudelaire fez o elogio da embriaguez — de vinho, poesia ou virtude. Como vinho bom é mais caro, poesia é artigo de luxo e está difícil exercer a virtude por falta de vagas, enfia-se o pé na jaca, para usar uma expressão brasileira que horrorizaria Baudelaire. O Ministério da Saúde da França advertiu em maio: ser jovem faz mal à saúde. Com a crise, aumentou, em todas as classes, a quantidade de viciados juvenis em substâncias legais ou ilegais, leves ou pesadas. Fuma-se mais e consomem-se pantagruelicamente maconha, cocaína e heroína — o consumo da substância alucinógena dobrou desde 2000, e sempre dá para comprar uma partida com o dinheiro do lanche. A bebedeira tem um agravante: tornou-se frequente o binge drinking ou biture express, em francês. A farra da bebida consiste em enfiar goela abaixo, um após outro, cinco, seis, sete copos de vodca, uísque ou o que for, desde que seja fone. Mais da metade dos francesinhos de 17 anos admitiu ter encarado o biture express pelo menos uma vez. A experimentação e os excessos próprios da idade adquiriram o gosto de fuga da realidade.
Ser um desocupado em nossos zangados trópicos é, na pior extremidade da pirâmide, padecer no inferno do crime, da mendicância e do salário de fome. A versão nacional, enfim, do mote beatnik “livefast, dieyoung" (“viver rápido, morrer jovem”). Na Europa, é vegetar em dias repetitivos, no purgatório da rede de proteção social, e contribuir para o depauperamento da poupança de famílias em dificuldades. Na Itália, que costumava ser poupadora disciplinada, a taxa média de dinheiro acumulado por família caiu de 24% da renda, no início da década de 90, para menos de 10%, segundo a Bankitalia, o banco central italiano. Taxa média, enfatize-se, porque quase sete em dez famílias não conseguem chegar ao fim do mês no país em que, do início do ano até junho, cinquenta empresários falidos suicidaram-se.
Os jovens que decidiram tomar as ruas brasileiras protestam por questões há décadas superadas pelos europeus afluentes. Todavia, é inegável que a tensão pela situação econômica, acrescida de outras disfunções, também está no ar na Europa. Volta e meia, ela escapa aos mecanismos de controle, e não há um padrão para os estopins. Na Grécia e na Espanha, com menos amortecedores, a falta de emprego e as medidas de austeridade são razões evidentes para marchas estridentes. Em nações mais ricas, o malaise extravasa de outras formas. Em 2011, no episódio que vem sendo comparado às manifestações no Brasil, a morte de um rapaz negro, Mark Duggan, alvejado pela polícia numa ação desastrada, provocou depredações numa escala jamais vista na Inglaterra. Há dois meses, quando o Paris Saint-Germain comemorou a vitória no campeonato francês, a região do Trocadéro, de onde se tem a mais bela vista da Torre Eiffel, virou uma praça de guerra a partir do nada, protagonizada por vândalos anarquistas — os black blocs.
Em junho, a França chocou-se com o assassinato de um militante de extrema esquerda, Clément Méric, de apenas 18 anos, estudante da Sciences Po, a prestigiada escola de ciência política de Paris. Um skinhead acenou-lhe um golpe na cabeça, com soco-inglês, na saída de uma loja para adolescentes na região dos grandes bulevares, onde ambas as facções compram as suas respectivas indumentárias características. Méric teve morte cerebral imediata. O episódio revelou como fascistas e antifascistas juvenis — é dessa maneira que eles se autodenominam — se confrontam nas ruas da França, movidos menos por política e mais por um espírito de gangue ressuscitado pelos tempos difíceis. Episódios como o ocorrido recentemente num internato católico de elite são abafados: no último dia de aula, os alunos entraram mascarados e espancaram o diretor. Quebraram-lhe os dois braços. Imigrantes são hostilizados, mas o contrário é igualmente verdadeiro. Nas escolas públicas, franceses brancos católicos são ameaçados por árabes e afins. Em Paris, muros trazem a seguinte inscrição: “Dans dix ans, la France sera musulman” (“Em dez anos, a França será muçulmana”). Na verdade, será em sessenta anos, segundo os demógrafos. A ferver a chapa do rancor e da xenofobia cruzada, o fogo da recessão e da ausência de perspectivas.
Para amenizar esse contexto, a Alemanha dispôs-se a conceder milhares de bolsas de estudos e a transferir os pilares do seu modelo escolar aos interessados. “O problema do desemprego juvenil requer criatividade”, disse a chanceler Angela Merkel. Pois é, a encrenca é tão colossal que An-ge- la Mer-kel apela à criatividade... O professor de economia Klaus Schwab, fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial, destaca que a integração máxima entre escola e mercado de trabalho é a chave do êxito alemão, porque também permite preencher de modo rápido e eficaz os vazios do setor produtivo. Faz sentido. De acordo com Jonathan Todd, há 1,7 milhão de postos de trabalho na UE, à espera de jovens treinados e desavisados. Há outra medida em estudo na França e na Itália, de caráter emergencial, mas inspiradora do lado estrutural: propor aos que estão a três anos da aposentadoria dar expediente de meio período em troca de salários menores, sem perda no valor das pensões. Eles dariam lugar a rapazes e moças de até 25 anos, admitidos com encargos mais baixos. Para fechar a conta, é preciso enxugar os gastos estatais. Voltamos, portanto, ao ponto inicial.
O resumo dessa ópera triste é que o tradicional estado europeu — o Leviatã que tolhe o indivíduo — não responde às necessidades dos cidadãos de uma federação de países. Como substituir o velho caduco? Ninguém sabe. A certeza é que passou da hora de compactá-lo, de Portugal à Estônia, da Finlândia à Grécia. Soa “receita Palmirinha” demais para uma iniciativa tão grandiosa como a União Europeia? Lembre-se que é no dia a dia das pequenas ações que as conquistas extraordinárias são obtidas. “Um dia é empurrado pelo outro”, escreveu o poeta romano Horácio. É na construção minuciosa de um presente que mire o futuro que se tirará a juventude da Europa da paralisia que lhe parece eterna. ■
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